Escrevi este texto quando voltei da Venezuela, no segundo semestre de 2004. Nunca publiquei, então, segue inédito aqui no blog!
Um dos símbolos mais conhecidos da Venezuela, Autana já deu nome a um carro da Toyota, mas está em sua lenda a razão de sua popularidade. Quando percorri a distância até a colina, meu guia de turismo e também "motorista" do barco chamava-se José Garcia. Conta ele que, segundo a lenda dos índios piaroas, Autana era uma árvore que dava muitas frutas. “Um dia, o deus Wahari a cortou para que os habitantes dali, que estavam morrendo de fome, pudessem alimentar-se de suas frutas. Entretanto, para tombá-la, Wahari teve de vencer Wicho, o diabo, numa briga. Wahari, então, ensinou os indígenas a cultivar a terra.” Observando-se, o formato da colina lembra o de uma árvore cortada.
José Garcia, o guia |
De Puerto Ayacucho, cidade no Amazonas Venezuelano e fronteira com a Colômbia, é preciso seguir de carro até o Porto Samariapo, que em nada lembra os portos tradicionais. Em uma minúscula área, reúnem-se um ou outro bar e restaurante, o suficiente para abastecer os navegantes. “Este porto é para pequenas embarcações. Um maior fica logo ali na frente”, explica um senhor. O outro é o Porto Samariapo, onde o exército venezuelano checa os passaportes e a permissão especial para conhecer Autana. A visita ao monte, declarado monumento natural em 1978, restringe-se a poucos e está subordinada à uma agência de turismo autorizada.
Os primeiros quilômetros rumo à Autana são percorridos pelas águas marrons do rio Orinoco. Crocodilos costumam habitá-lo. O Orinoco, cujo sistema hidrográfico ocupa cerca de dois terços da Venezuela, constituí-se o mais longo rio daquele país — cerca de 2.100 km. Longo e importante; navega-se por quase toda sua extensão. A cor de terra do Orinoco fica para trás quando se entra nas águas negras do rio Sipapu, mais estreito que o anterior. No Sipapu, os diferentes tons de verde das inúmeras árvores que o margeiam refletem-se em suas águas. Resulta impossível distinguir tantas tonalidades.
Neste ponto, qualquer vestígio de civilização já ficou para trás. Na imensidão da selva, os turistas passariam totalmente despercebidos, se não fosse o ruído do motor. Não há animais à vista; somente alguns pássaros aparecem vez ou outra. “É uma região com muitas árvores e poucos animais. Tem também minas de ouro, diamante, ferro e bauxita”, explica o motorista e guia José Garcia. Meio venezuelano, meio brasileiro — como se define —, filho de pai mestiço e mãe indígena da tribo Amoruã, seu José leva 20 de seus 48 anos mostrando as belezas da Amazônia para os turistas, na maioria, de acordo com ele, alemães. “Nunca vi a guerrilha”, trata de adiantar. José criou seus cinco filhos com o turismo e orgulha-se de que todos estejam na escola.
Para abastecer o motor do barco, um galão de gasolina vai o tempo todo acomodado em frente a Garcia. Mas isto não impede a turista espanhola de fumar compulsivamente. Há extintor de incêndio para alívio dos outros tripulantes. Própria para turismo, a embarcação — chamada de bongo — conta com uma parte coberta, feita de palha: um luxo muito bem-vindo no calor que beira os 40 graus. Apesar da dicotomia da paisagem — água e flora — o trajeto de maneira alguma torna-se repetitivo. A cada olhar a descoberta de um tipo diferente de árvore. E o reflexo delas nas águas lembra uma pintura de Monet. O impressionismo da natureza é igualmente belo ao do francês.
No meio do caminho, ainda no rio Sipapu, quando o Sol está a pino, uma parada para se refrescar é estratégica. O bongo ancora na margem do rio, bem próximo a uma pequena cascata, denominada Raudal de Pereza. Pereza significa preguiça. Ali, as pedras evidenciam a formação rochosa da Amazônia, que, por muitas vezes, passa camuflada em meio a imensidão da mata.
Aproveita-se o intervalo de navegação para almoçar. Nada muito elaborado. As refeições para todos os dias da viagem são levadas no barco, e é prudente racionar a água e a comida. “Nunca se sabe o que pode acontecer aqui. Precisamos estar prevenidos para qualquer eventualidade”, adverte Lucas Monsalve, um venezuelano, cujos pais moram em Puerto Ayacucho e está acostumado com este tipo de passeio. O intervalo na cascata recarrega as energias e marca a metade do caminho até o lugar da pernoite.
A entrada em um terceiro rio, o Cuao, sinaliza a proximidade com Boca de Autana, onde se encontra o acampamento dos índios piaroas, que alugam quiosques e ocas para turistas. Apesar de estarem acostumados a receber pequenos grupos de estrangeiros, os piaroas não venceram a timidez.
Ao atracar, algumas crianças e mulheres aproximam-se do bongo. Os maridos, explicam, haviam ido comprar mantimentos em um vilarejo próximo. No século 21, tornou-se mais fácil comprar a comida que retirá-la da selva, ainda que se conserve o cultivo de algum tipo de agricultura no acampamento. Durante a estada, alguns índios limitaram-se a observar a certa distância os movimentos dos hóspedes. Curiosas, as crianças acercavam-se mais e murmuravam poucas palavras – algumas de compreensão difícil.
O amanhecer do dia assinala que é hora de completar o trajeto. Troca-se de embarcação, do bongo para uma mais rápida, a voladora, o que reduz o trajeto a um pouco mais de uma hora navegando pelo rio Autana. Na segunda parte da viagem, pode-se avistar a colina desde muitos pontos do rio. Garcia explica que não é possível aproximar-se demais dela. “Para chegar a Autana são uns 30 dias caminhando pela mata”, diz.
"Mirador San José" |
Para alcançar o tal "mirador" caminha-se durante dez minutos pela selva, em uma parte repleta de pedras. A vista recompensa. No topo das rochas, as copas das árvores da floresta formam um mar verde. Uma paisagem apenas interrompida por Autana e outro monte, o Cara de Índio, que se elevam na imensidão da Floresta Amazônica venezuelana.
Fotos: Roberta Prescott
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